sábado, 7 de abril de 2012

Depois de um ano no deserto, o pescador volta à praia.

Seu barco ainda está lá, encalhado na areia, descascado pelo sol e cheirando a maresia. O limo agora cobre quase toda a proa que, na maré cheia, fora lambida tantas vezes pela espuma salgada do mar. A popa, por outro lado, está mais seca do que nunca – mesmo no pico da enchente, as marolas não a alcançam. Tornou-se o berçário perfeito para a mamãe quero-quero, que agora coloca seus ovos no vazio onde estaria o motor que nunca fora comprado. O barco de madeira, de 12 pés, sempre navegara com dois remos velhos, que nunca mais seriam encontrados.

Descalçou as sandálias de dedo e correu em direção ao velho companheiro de mar. Beijou o casco, subiu a bordo, pôs-se em direção de sentido e anunciou o retorno. “Marujos, companheiros, depois de um ano enfrentando as privações que a aridez me conferiu, estou de volta para avançarmos ao imenso oceano e navegar nas farturas que só essas águas podem oferecer!”. A seus pés calejados, que fugiam das farpas de madeira, dois siris escutavam, distraídos, procurando o buraco que os levaria de volta à areia quente.

O cansaço era grande, mas a ansiedade era muito maior – tinha que ir ao centro da cidade comprar novos mantimentos.

A pracinha ainda está lá, rodeada pela Igreja, pela Prefeitura e pelo Fórum e também pela mercearia, pela farmácia e pelo boteco. No centro, um chafariz de cimento, sem água, virara refeitório das centenas de pombas, abastecido pelas crianças depois das missas de domingo. Dos quatro bancos da praça, um estava quebrado; outros dois, ocupados por carolas que, com rosários nas mãos, esperavam a hora da missa; e o último servia de cama, forrado com jornal, para um bêbado da cidade.

Um arrepio de êxtase e nostalgia passou pela espinha do pescador que voltava para casa. Queria ir logo para o boteco, comprar cigarros e tomar um trago, mas sua moral cristã o obrigou a passar pela Igreja. Ajoelhou-se na frente da Nossa Senhora dos Navegantes e rezou dez ave-marias em dois minutos, afinal, a mãe dos mares sabia que ele não tinha muito tempo a perder.

No boteco, encontrou alguns velhos parceiros de bar, que o cumprimentaram com tapinhas nas costas. Comprou seis maços de cigarro, sem filtro e sem contraindicação e, num copo fosco de velho, cheirando a sabão de coco, deu três tragos de cana para apurar os sentidos. Antes de se despedir, anuncio o retorno. “Marujos, companheiros, depois de um ano enfrentando as privações que a aridez me conferiu, estou de volta para avançarmos ao imenso oceano e navegar nas farturas que só essas águas podem oferecer!”. Um dos bêbados, que o assistia com faróis baixos, não conteve um soluço; outros lhe ofereceram mais cachaça; o resto continuou bebendo cerveja e cachaça e comendo rollmops e bolinhos de siri.

Faltava pouco para poder voltar à areia e em seguida ao mar. Foi à mercearia e comprou três quilos de farinha de trigo, duas caixas de fósforo, óleo de soja e um galão de água vazio, que depois o encheria na bica perto da praia. Enquanto passava entre as prateleiras de comida e de não-comida, as duas únicas do lugar, chutou sem querer uma pequena panela de alumínio, que devia servir para as goteiras nos dias de chuva. Olhou para o caixa, era a filha mais nova da dona da mercearia, que nem ouviu o barulho, estava concentrada em lixar as unhas da mão esquerda, apoiada sobre um pote de pé-de-moleque. O pescador percebeu a distração e escondeu a panelinha dentro da camisa, nas costas. Pagou a conta e conseguiu roubar. Mas não fora um crime, afinal, se tivesse tempo, convenceria a caixa que a panela seria para um causa nobre.

De volta à praia, descarregou as compras no barco, inclusive o galão, já cheio de água doce e cristalina. Foi, então, ao rancho da colônia dos pescadores, precisava de uma tarrafa e de um remo. O casebre de madeira azul clara, com a inscrição colônia B-28, em vermelho, ainda está lá, no canto direito da praia, à beira-mar. Fora lugar de memoráveis reuniões e confraternizações dos mais célebres marujos e pescadores da região. Logo após a entrada, entre dois pilares, uma placa indica o Memorial dos Homens do Mar, feito por retratos, apoiados sobre um casco de madeira, de pescadores mortos em acidentes marítimos de toda sorte. Velas apagadas e flores murchas rodeam as fotos empoeiradas. O pescador não se contém, deixa cair uma lágrima sobre um cinzeiro que alguém esqueceu no altar.

Levanta a cabeça e olha para os lados, só encontra um velho companheiro de mar, num canto, sentado sobre uma caixa de batatas, fumando um cigarro de palha. Recompõe-se e anuncia o retorno. “Marujos, companheiros, depois de um ano enfrentando as privações que a aridez me conferiu, estou de volta para avançarmos ao imenso oceano e navegar nas farturas que só essas águas podem oferecer!”. Mas, para isso, o pescador precisa de um remo e uma tarrafa. O velho apaga o cigarrinho, suspira e diz que pode pegar o remo que está encostado na parede, atrás de uma canoa, mas a tarrafa ele não pode emprestar, quer vendê-la, largar a pesca e passar um tempo no deserto. O pescador insiste, mas o velho resiste. Acabou saindo só com o remo na mão.

Andou poucos metros, cabisbaixo, com o remo apoiado no ombro e na areia, criando um trilho entre conchas e algas, até tropeçar em um tronco trazido pelo mar e deixar o remo o cair. Fita o pedaço de madeira e o levanta, descalça as sandálias e volta para o rancho correndo, empunhando o remo com a pá para frente, até encontrar a cabeça do velho, que fumava seu último cigarrinho de palha.

Por um momento, o sangue espirrado na parede e no chão comoveu o pescador, mas o sacrifício fora necessário, afinal, o velho não passava de um desertor que não queria dar-lhe uma rede para a pesca.

Foram dez dias no mar. Só saía do barco quando encontrava algum banco de areia para acender uma fogueira, fritar um peixinho e esquentar o pirão. Pescou trinta peixes, comeu vinte na empreitada e outros dez foram vendidos para um turista, na beira do mar, quando voltou. Juntou o dinheiro e foi para o boteco, tomou cerveja e cachaça e comeu só rollmops, porque os bolinhos eram caros.

Quando um antigo pescador, bêbado, doido varrido, que passara alguns anos cidade, foi ao bar tentar convencer os boêmios a voltar para a pesca, não conteve um soluço e ofereceu-lhe um trago de cachaça.

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