sexta-feira, 16 de novembro de 2012

o rato

Não gostava dele, quer dizer, nunca tive sentimento ruim, ódio nem rancor, entendes? Só não gostava, nunca gostei. 

O vinho tinto já está deixando minha língua mais solta. Eu nem bebo, mas hoje é por justa causa, fiquei muito tenso com o velório do pai. Além do mais, vinho é vinho, né, sempre faz aquela moral. 

Ana, mas o que eu sentia pelo Tião não importa. Pra mim, a questão é como que tu foste te interessar nele, sabes do que estou falando! Ela fugiu com o olhar, sem graça. Desculpe, não foi minha intenção, mas é que te vejo assim, com as olheiras de choro mais belas que já vi, e não posso aguentar. Ele não merece uma gota, nem d’água, nem de mim, o filho único; quanto mais de ti. 

Eu sabia que um dia este dia chegaria. Espero que ela esteja entendendo esta angústia que me consome, porque foram anos de silêncio, de cúmplice compulsório do grande Tião Antunes. E agora ele está morto, e não foi por minha culpa. 

Tenha paciência comigo, ainda estou processando tudo isso e já percebi que não dou conta das ideias só na cabeça. Parece que tenho que falar com alguém pra dar sentido a isso tudo, sabes? Mas vejo que estou sendo inconveniente, estás exausta, até pensei que ias cochilar antes de chegar a sobremesa. Quando acabarmos o pudim de leite, vamos embora, te deixo em casa. Ela balançou as mãos, como se dissesse pra eu largar de frescura e seguir vomitando meus traumas. 

Estou desconfiado que ela esteja mais interessada na história do Tião do que deveria, estou desabafando toda minha vida para uma desconhecida. Não, na verdade, é uma conhecida que conheci hoje, e talvez seja até mais que conhecida - era amante do meu pai, carambas! Além do mais, tenho nada a perder: meu filho já desistiu de mim justamente por causa dele, mora longe daqui, com a mãe. Eu também nunca mais casei, nem namorei; e esse velho tinha uma amante, e não uma qualquer!

Foi com uns dez anos que descobri tudo, ou quase tudo. É claro que eu não sabia que era crime, mas achava estranho. Aquela intuição bem típica da criança que começa a ficar esperta. Perguntei pra mãe o que era aquilo e ela achou graça, coitada, nunca desconfiou de nada. Uma santa, morreu faz tempo. Foi direto pro céu e vai esperar por ele pra sempre. Ana franziu o nariz, quase fechando também os dois olhos, mas não falou nada. Nenhuma palavra até agora - deve ser outra santa.

Algum tempo depois, a mãe comentou pro Tião da nossa conversa. Ela não sabia da onde que eu tinha tirado aquelas histórias, estava até meio preocupada com minhas companhias na escola. Estávamos jantando, me lembro bem: arroz integral, abobrinha, feijão preto e frango caipira. O Tião só comia feijão com a carne do dia, quando tinha. E aí, quando ele ouviu o que mãe falou, tirou de repente a coxa de frango da boca toda engordurada e olhou pra mim, mas eu já estava com olhar fixo nos últimos bagos de feijão no prato. Claro, ficou puto da cara, só que não se entregou, começou a dar risada e disse com aquela voz sedutora: “essas crianças de hoje em dia estão muito precoces, mas também, o menino só fica na rua!”. Minha mãe fez que ‘sim’ com a cabeça, com cara de preocupada, mas com um pequeno sorriso amarelo.

Foi aí que começou meu pesadelo de cúmplice do próprio pai. Ele me contou tudo naquele dia, abriu o jogo mesmo. Eu não sabia bem o que pensar, era uma só uma criança. Tudo que ele me pediu foi segredo absoluto, não podia falar mais nada pra minha mãe. O pior é que a partir daí eu fui perdendo o interesse nela, só queria saber do meu pai. Se bem que é normal, o filho homem tem que ficar mais com o pai mesmo, se não, vai que fica meio afeminado, né, Ana?!

A verdade é que até meus quinze anos, isso nem incomodava muito. Eu mal pensava, era uma criança tola. Tudo o que eu queria era impressionar meus colegas. O pai sabia e me ajudava: tênis de marca, relógio, boné, essas coisas normais da adolescência. Até o fim do segundo grau foi assim, eu não me importava muito com as coisas do velho, tinha coisas mais importantes pra pensar. Não era fácil se enturmar no colégio em que estudei!

Tudo bem, eu sei, não é fácil pra ninguém, mas, de qualquer forma, quando fui pra faculdade foi uma época complicada. Cursei Economia e sabe como é, sempre tem um pessoal metido a revolucionário no centro acadêmico. O pior é que fiquei amigo de um deles. É que o cara era muito gente boa e acabei me influenciando. Ele me indicou uns livros do Dostoiévski, Kafka, Benedetti e cheguei até a ler uns capítulos de Marx, vê se pode! E aí, nessa época, fiquei meio revoltado com o Tião. Consegui entender o esquema a fundo e o pior: toda a lógica que envolvia aquilo. Fiquei com muito nojo e resolvi cortar relações com ele.

O velho ficou com medo que eu falasse de tudo pra todos e começou a apelar pra intimidação: quis cortar minha mesada. Eu bem que tentei uns empregos pra me sustentar e não depender mais dele, mas não consegui nada decente. A vida é mais difícil do que parece...

Aos poucos fui me afastando do centro acadêmico e dos meus amigos revolucionários. A verdade é que eles me faziam mal. Sem querer, alimentavam meu dilema todos os dias. Pra escapar do sofrimento, resolvi focar nos estudos e me formar logo. 

Que mulher misteriosa, essa Ana. Continua quieta, só me ouvindo. Talvez ela seja psicanalista ou talvez seu luto seja bem maior que o meu. Seus olhares me recriminam e me admiram ao mesmo tempo. Será que ela está me ouvindo?!

Me diga uma coisa, chegaste a fazer faculdade? Com que trabalhas, Ana? Deu um gole no vinho e lançou um olhar impaciente. Onde é que eu estava mesmo? Ah, então, depois que me formei foi dureza. Só achava emprego que pagava o piso do economista, que era menos do que a mesada que o Tião pagava.

Fiquei desempregado por um ano, mas conseguia levar bem minha vidinha. Até que veio mais um carma: minha ex-mulher (namorada na época) engravidou. Aí eu não tive saída, fui procurar o velho.

Pedi desculpas por tudo. Confessei que era cabeça fraca, que tinha sido influenciado por más influências, mas que, nunca, em nenhum momento deixei de amá-lo. Nem eu sei o que tinha de verdade naquele meu desespero; nem o Tião. O que ele sabia era me acalmar: “Filho querido, que felicidade! Não vejo a hora de ser avô.” Pagou toda a festa pra quinhentos convidados e deu entrada num apartamento na Beira-Mar: dois quartos e uma suíte. “Vocês vão precisar”.

Realmente precisávamos. Queria que meu filho crescesse no melhor dos ambientes e tivesse todas as condições pra ser bem educado. Queria ser um pai exemplar, o oposto do Tião.

Eu juro que tentei. Fiz tudo o que estava dentro e fora do meu alcance. Mas o menino foi ficando cada vez mais rebelde. E minha ex-mulher ali, me desrespeitando, dando confiança pra ele. Era um saco: todo almoço caía no mesmo assunto. Eles detestavam o Tião, especialmente quando ele resolvia passar lá em casa pra ficar dando palpite. Difícil entender que tudo o que tínhamos era graças a ele - gostássemos ou não. 

No fim das contas, essa ingratidão foi minando as estruturas da família. A gota d’água foi quando meu filho veio me intimando, como se fosse um oficial de justiça, pra eu confessar tudo o que sabia do meu pai. Ele tinha ouvido um diz-que-me-diz na universidade e veio tirar as satisfações comigo. Pra variar, a ex-mulher vinha atrás dele reforçando as acusações.

Imagina minha situação, Ana. Parecia cena de novela: “ou nós ou ele”. Eles queriam que nos mudássemos pra longe, pra uma cidadezinha de interior, começar uma vida simples do zero e nos livrar de toda a influência do Tião. 

Eu disse que não e não. Como assim?! Não fazia o menor sentido abrir mão de tudo por causa de um ou outro desvio de conduta do Tião. Seria como se nós nos rendêssemos a ele, entendes? Pois é. Eles foram teimosos e se foram. Tenho visto meu filho uma vez por ano. Não é fácil...

Ou ela está com muito sono ou é muito insensível. Nem uma palavrinha pra me consolar?! Busco por mim próprio: os olhos de Ana são tão fundos e serenos que me acalmam naturalmente.

- Ataliba, continue, por favor. Ela sorriu discretamente.

Desculpe, vou tentar ser mais direto agora. Nem sei se deveria contar isso pra ti, que foste tão próxima do Tião. Mas, já que estamos aqui e não tenho mais nada a perder... não é mesmo? 

Quando minha ex-mulher e meu filho se foram, fui transtornado até o escritório do Tião. Cheguei querendo matá-lo e ele, que já sabia de tudo, me recebeu com aquele sorriso cínico. “Senta, meu filho. Aceite este copo de uísque.” Não sentei. Peguei o copo, joguei com toda força na cabeça dele. E desabei no choro. Nem consegui tirar da pasta o revólver que levava comigo.

Podia tê-lo matado, mas tudo o que causei foi um galo e mais quatro pontos na careca do velho. Ele chamou a secretaria que trouxe gelo e fez um curativo. Logo ele ficou bem. “Estás mais calmo, filho?” Dei um abraço no pai, pedi desculpas e fui embora. Nunca mais tive coragem de voltar no escritório dele. Falamos no telefone uma vez ou outra. Ele também não apareceu mais naquele mesmo apartamento que tanto gostava de ir quando eu ainda tinha família.

Foi ficando velho e eu fui me afastando, acabei me esquecendo de tudo, nem me importava mais. O velho passou todo o negócio pra um sócio. Foi bom: aliviou minha consciência. 

Mas, hoje, depois da morte dele, voltei a me questionar se eu devia tê-lo matado.

Afinal, ele assassinava praticamente meia dúzia por semana. Isso sem falar nas mortes indiretas e no suborno de políticos. Engraçado, Ana, o tempo passou e..., no fim das contas, Tião Antunes acabou morrendo de morte morrida, assim, natural.

- Na verdade, não, Atalibinha: foi arsênico no café. Ela virou o resto de vinho que sobrava na taça e se levantou. 

Me apaixonei de vez. Mas ela nunca mais voltou.

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